Revogação de normas processuais através de medida provisória

Por: Janguiê Diniz
01 de Mar de 2000

Estipula o art. 62 da Lex Fundamentallis urgência, o Presidente da República podementalis, verbis: "Em caso de relevância e rá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional, que, estando em recesso, será convocado extraordinariamente para se reunir no prazo de cinco dias.

"Parágrafo único. As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes". Por seu turno, o art. 84, XXVI, também da CF, frisa: "Compete privativamente ao Presidente da República: editar medidas provisórias com força de lei, nos termos do art. 62".


Ressalte-se, inicialmente, que as medidas provisórias representam uma exceção ao procedimento normal de elaboração legislativa, uma exceção à função legiferante do Poder Legislativo, vez que cabe ao Congresso a elaboração do ordenamento jurídico. Logo, seu cabimento deve ser interpretado sempre em sentido estrito, "submetendo seus pressupostos ou requisitos a uma criteriosa e rígida análise sob pena de descaracterização do instituto, e mais do que isto, de através dele correr-se um risco profundo à manutenção do Estado Democrático de Direito. Como é sabido e consabido, a medida provisória é um instrumento de produção legislativa copiado do modelo italiano e idealizado pelo constituinte para um sistema parlamentarista de governo.


O que é interessante notar é que naquele país a forma de governo é parlamentarista; no Brasil, não.

Surgiu para coibir o poder legiferante do Presidente da República, substituindo o famigerado decreto-lei, sempre lembrado como instrumento do autoritarismo que esculpiu o regime político do Brasil durante a vigência da Carta de 1967 e de suas 27 emendas.


Uma das diferenças do decreto-lei é que a sua expedição só poderia ser feita em caso de urgência ou de interesse público relevante. Outra pertine ao fato de que, se o Congresso não deliberasse sobre ele, o texto era tido como aprovado, diferentemente do que ocorre com a medida provisória.


Ora, "não teria sentido que os parlamentares lutassem contra o 'decreto-lei' aplicável apenas a determinadas matérias e aprovassem veículo mais problemático, que, segundo alguns autores, é mais abrangente que o decreto-lei, à falta de limitação material para a sua produção".


Urge lembrar que "se a crítica maior ao decreto-lei decorria do fato de que tornava o Parlamento um poder inútil da República e, por esta razão, teria que ser extirpado da Constituição, à nitidez, teria sido contra-senso aprovar veículo que viesse a tornar o Presidente da República em legislador mais poderoso do que à época do regime militar".


Em outras palavras, toda a matéria que o constituinte entendeu ser objeto de deliberação colegiada, sempre mais transparente e de ampla discussão, não poderia ser permitida se veiculada por medida provisória. E que o legislador solitário corre sempre o risco de cometer maiores arbitrariedades e errar, principalmente se sua deliberação sequer tiver sido levada à discussão popular, como ocorre normalmente com as matérias veiculadas por medidas provisórias.


Além das limitações materiais, demanda-se também a observância de limitações formais. Há de se exigir do legislador monocrático que justifique a urgência e a relevância, requisitos que, inexistindo, tornariam as medidas provisórias inconstitucionais.


Mister se faz a presença dos dois requisitos assinalados, e não apenas de um, como ocorria com o decreto-lei, sobretudo porque toda matéria legislada, presumivelmente, tem em si a característica de relevância; logo, além da relevância tem de estar presente a urgência. Ou seja, "é necessário que surja uma situação imprevisível configurando uma emergência exigente de providência normativa imediata".


No particular, é auspicioso lembrar que "o permissivo constitucional contido no art. 62 da CF não deverá ser interpretado como sinônimo de autorização para que se elaborem normas jurídicas típicas de uma legalidade excepcional, tomada no sentido de Direito Constitucional de crise, pois essas estão explícita e minuciosamente regulamentadas na própria Constituição, em seu título V, ao tratar da defesa do Estado e das Instituições Democráticas, e onde, mesmo aí, o Presidente da República não será dono e senhor absoluto da verdade, pois, em providência salutar, o Constituinte de 87/88 lhe instituiu limites rígidos, tanto na hipótese do Estado de Defesa como na do Estado de Sítio, a ponto de não afastar a 'responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executores e agentes (art. 141 da CF)"'.


Apesar de ter força de lei, por ser ato do Poder Executivo constituindo ato administrativo, editada sem a participação do Poder Legislativo, isto, por si só, já seria suficiente para descaracterizá-la como "lei", pois esta é, por definição, um ato complexo em que se tem a participação de ambos os Poderes, nos moldes do art. 44 da CF, quando frisa que o Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional. Por outro lado, como tem de ser convertida em lei, consoante exprime o art. 62 da CE não é lei, e, por não ser, é publicada no Diário Oficial como ato do Poder Executivo.


Ampliando o quadro de explanação, saliente-se que o parágrafo único do art. 62 da CF torna sem efeito a medida provisória não convertida em lei no prazo de trinta dias ou rejeitada. A novidade em relação ao decreto-lei, como visto acima, é que a não-conversão dela em lei retira-lhe a efiCácia ex tunc e não ex nunc. E como se não tivesse existido no mundo do direito, seus efeitos nada valendo, e podendo, inclusive, se gerou prejuízos quantificáveis pecuniariamente, permitir a responsabilização do Poder Público, do Presidente e dos Ministros que a assinaram.

E que as MPs podem gerar conseqüências irreversíveis e efeitos jurídicos imodificáveis. "Para este tipo de relação conseqüencial é que o constituinte impôs a necessidade de o Congresso Nacional regulá-las. Para o mundo do direito não é admissível que o tratamento jurídico pertinente não seja ofertado, adequando efeitos, que perderam sua juridicidade à luz da medida provisória rejeitada ou não apreciada à ordem jurídica preexistente"

Com efeito, "A falta de hábito, de um lado, e o temor reverencial, de outro, fazem desta garantia do cidadão esculpida na lei maior, instrumento de pouco uso, razão pela qual nunca foram aplicados os dispositivos junto ao governo, pela edição de medidas provisórias não aprovadas ou rejeitadas, embora sua utilização por prejudicados poderia ser fator de inibição de medidas demagógicas, irresponsáveis ou de pequena maturação no Executivo"


Por outro lado, a título de ampliação das considerações, a reedição de medida provisória no dia seguinte ao de sua rejeição, vulnera os princípios sistêmicos consagrados nos arts. 12, caput, e parágrafo único, 22, 44, 48, caput, c/c o art. 22, I, e 62 da CF, que tratam respectivamente dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, da independência e harmonia dos Poderes e da possibilidade conferida ao Presidente da República de editar medidas provisórias, com força de lei, bem como de suas específicas atribuições. Ademais, a insistência do Presidente, numa medida rejeitada, pode configurar crime de responsabilidade.


O dano decorrente de medida provisória que cuide de matéria penal, por exemPIO, por força da qual se prive de liberdade o cidadão, se vier a ser rejeitada, é irreversível, pois, apesar de o cidadão não poder ter sido preso, à lun do direito anterior e do atual, já que a perda de eficácia é ex tunc, a prisão terá ocorrido. Este cidadão não poderá declarar que sua prisão inexistiu, visto que terá sentido, na própria carne, os efeitos da perda de liberdade. A evidência, tais relações deverão ser disciplinadas pelo Congresso para determinar o tipo de reparação a ser devida. Outrossim, as mesmas matérias não admitidas para a veiculação por leis delegadas (art. 68 da CF) não poderiam ser objeto de medida provisória. Toda a matéria em que o tipo de reparação, na disciplina posterior, implicar forma diversa da consagrada na medida, não poderia dela ser objeto. Dessa forma, matéria penal não poderia ser veiculada por medida provisória, visto que os bens maiores dos cidadãos, que são a vida e a liberdade, poderiam ser duramente atingidos sem reparação adequada. Veja-se que um anteprojeto de lei sugerindo a pena de morte não passaria pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, mas, se um homem só decidisse, aconselhado por amigos nem sempre de maior nível intelectual, por ser Presidente, editar uma medida provisória, instituindo-a, seria de impossível reparação pelo Congresso.


No diapasão, "deve-se lembrar que à luz da MP 449/94, foram decretadas algumas prisões sem o devido processo legal, sem ampla defesa e sem trânsito em julgado da decisão. Surgida em face do empenho do Secretário da Receita Federal da época em prender empresários, por quem nunca demonstrou especial afeto, foi considerada inconstitucional pelo STE Os que sofreram o peso do arbítrio, à evidência, nunca terão reparação à altura da violência sofrida".


Por esta razão que não cabe, em matéria penal, medida provisória, em face da impossível disciplina das relações jurídicas decorrenciais de forma equivalente. Ademais, ela não é lei, o que violaria o princípio da reserva de lei consagrado no art. 52, XXXIX, da Lex Legum, já que a liberdade é um grande valor protegido na CF.


Ademais, não admissível o uso de medida provisória para instituir tributos, haja vista o princípio da anterioridade, que preconiza que o tributo só poderá incidir no exercício financeiro seguinte. A criação de tributo através de MP não encontraria respaldo no pressuposto da urgência desta.


No mesmo sentido somos radicalmente contrário ao uso do instituto da medida provisória para modificar normas processuais. Basta analisarmos atentamente o expressamente salientado no art. 22 da Carta Magna para constatarmos a perfeita impossibilidade.


O art. 22 frisa: "Compete privativamente à União legislar sobre: direito processual. Parágrafo único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo"


Em procedendo a hermenêutica mais simples sobre o preceptivo antes transcrito, chega-se à ilação que é de competência da União, através do Congresso Nacional, legislar sobre direito processual. Essa matéria, especialíssima no particular, não pode ser objeto nem mesmo de delegação para o Presidente da República. A delegação permitida através de Lei Complementar nos termos do parágrafo único do afi. 22 é para os Estados. Entrementes, os Governadores não têm competência para expedir medidas provisórias. Ademais, desde a década de 1930 a legislação processual foi unificada pela criação de um Código de Processo de abrangência nacional.


Com efeito, a competência sobre a matéria é privativa e indelegável do Congresso Nacional em sua função típica.


Ademais, os pressupostos de relevância e urgência não autorizam a MP a revogar, apesar de sua vigência imediata, nenhum dispositivo de lei, pois só quando conferida pelo Congresso Nacional é que poderá fazê-lo, como consequência do princípio de que a lei posterior revogará a lei anterior naquilo em que colidirem (§ Iº do art. 2º da LICC). Norma jurídica com força de lei não é o mesmo que lei, em sentido formal, e por isto podemos até mesmo afirmar que durante os trinta dias de sua vigência, antes da conversão, o que a MP fará é suspender a lei que antes regulava a matéria, a qual terá nova regulamentação, ou pela conversão da MP, ou pela regulamentação que vier a ser estabelecida pelo Congresso Nacional, após a rejeição, expressa ou tácita, da proposta do Executivo.


Acresça-se a isto o fato de que o art. 2º da CF estabelece o princípio da separação dos Poderes da República, asseverando serem eles independentes e harmônicos entre si. Logo, o princípio da separação dos Poderes preconizado pelo Barão de Montesquieu não permite que o Executivo legisle sobre matéria processual, atos típicos do Poder Legislativo. Ademais, quanto a essa matéria, como foi visto, não se permite a delegação, haja vista ser a competência privativa do Congresso Nacional em sua função típica.


Digno de menção, também, é que as leis processuais são os meios para que ajurisdição concretizada através do devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, direitos fundamentais agasalhados no art. 52, LIV e LV, cláusulas pétreas, seja exercida. Logo, o Presidente da República, de modo próprio, não pode modificar essas normas.


Ratificando o nosso ponto de vista, o STF deferiu medida cautelar em ADIn n. 1.753, proposta pelo Conselho Federal da OAB, contra a MP 1.798, de 9-4-1999 (reedição da MP 1.703, de 27-10-1998) que altera a redação do art. 188 do CPC, ampliando os prazos da ação rescisória para o Ministério Público e as pessoas jurídicas de direito público, acrescentando também o inciso X ao art. 485 do mesmo Código, estabelecendo o cabimento de ação rescisória de sentença em ação de indenização por desapropriação, quando o valor for manifestamente inferior ao do mercado. A Cofie Suprema, por unanimidade, decidiu suspender a eficácia do art. 188 do CPC por entender relevante a tese de ofensa ao princípio da isonomia pela duplicação do prazo da rescisória apenas quando proposta pelo Ministério Público e pessoas de direito público, e por ofensa ao art. 62, caput, da CE pela falta de URGÊNCIA à edição da medida provisória.


Conclusões:


A luz do sucintamente explanado, cumpre-nos arrematar, asseverando:

l) A utilização reiterada do instituto da medida provisória coloca a Nação brasileira numa incerteza jurídica, correndo-se o risco da manutenção do Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF).

2) O instituto da MP representa uma exceção à função legiferante do Poder Legislativo (apenas quanto à iniciativa), pois a titularidade de julgar a oportunidade da lei, representada no conteúdo do art: 62 da CF pela expressão "relevância e urgência", permanece nas mãos do Congresso Nacional.

3) Rejeitada a MP, expressamente, pela sua não-conversão em lei, ao Poder Executivo é vedado reeditá-la, ainda que com algumas institucionais: parece ser esse o caso das inovações discutidas de favorecimento unilateral aparentemente não explicável por diferenças reais entre as partes e que, somadas a outras vantagens processuais da Fazenda Pública, agravam a conseqüência perversa de retardar sem limites a satisfação do direito do particular já reconhecido em juízo.

4) O silêncio do Congresso Nacional durante os trinta dias previstos no parágrafo único do art. 62 da CE não se pronunciando sobre a MP, implicará rejeição da mesma, o que representa, no espírito total da CF, o inverso do art. 55, § P, c/co art. 51, § 32, do Texto de 1967/1969, que no silêncio do Parlamento produzia efeitos favoráveis ao Exçcutivo, ou seja, sua aprovação pelo decurso de prazo.

5) Impossibilidade de através de medida provisória se tipificar delitos, porquanto violaria o princípio da reserva de lei consagrado no art. 5º, XXXIX, da Legum.

6) Impossibilidade de através de MP instituírem-se tributos, a não ser que haja afronta ao princípio constitucional da anterioridade. Demais disso, a criação de tributo através de MP não encontraria respaldo no pressuposto da urgência da MP.

7) Total impossibilidade de se modificar ou revogar leis processuais através de MP, por serem essas de competência exclusiva da União através do Congresso Nacional. No particular, consoante se depreende do § 1º do art. 2º da LICC, a lei posterior revogará a lei anterior naquilo em que colidirem. Normajurídica com força de lei não é o mesmo que lei, em sentido formal.

Por outro lado, o uso de tal instituto implicaria a falta da urgência imprescindível.

8) O desrespeito a qualquer desses pontos gerará a inconstitucionalidade da matéria, que poderá ser reconhecida por qualquer juiz ou tribunal com efeito inter partes, ou pelo STF com efeito erga omnes.

Transformando

Sonhos em Realidade

Na primeira parte da minha autobiografia, conto minha trajetória, desde a infância pobre por diversos lugares do Brasil, até a fundação do grupo Ser Educacional e sua entrada na Bolsa de Valores, o maior IPO da educação brasileira. Diversos sonhos que foram transformados em realidade.

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